sábado, 12 de maio de 2012


As Ursas

 O profeta Eliseu está a caminho de Betel. O dia é quente. Insetos zumbem no mato. O profeta marcha em passo acelerado. Tem missão importante, em Betel.
De repente, muitos rapazinhos correm-lhe no encalço, gritando:
_Sobe, calvo! Sobe, calvo!
Volta-se Eliseu e amaldiçoa-os em nome do Senhor; pouco depois, saem da mata duas grandes ursas e devoram quarenta e dois meninos: doze a menor, trinta a maior.
A ursa menor tem digestão ativa; os meninos que caem em seu estômago São atacados por fortes ácidos, solubilizados, reduzidos a partículas menores. Somem-se.
O mesmo não acontece aos trinta meninos restantes. Descendo pelo esôfago da grande ursa, caem no enorme estômago. Ali ficam. A princípio, transidos de medo, abraçados uns aos outros, mal conseguem respirar; depois, os menores começam a chorar e a se lamentar, e seus gritos ecoam lugubremente no amplo recinto. "Ai de nós!. Ai de nós!"
Finalmente, o mais velho acende uma luz e eles se vêem num lugar semelhante a uma caverna, de cujas paredes anfractuosas escorrem gotas de um suco viscoso. O chão está juncado de resíduos semi-apodrecidos de antigas presas: crânios de bebês, pernas de meninas. "Ai de nós!"- gemem. "Vamos morrer!"
Passa o tempo e, como não morrem, animam. Conversam, riem: fazem brincadeira, pulam, correm, jogam-se detritos e restos de alimentos.
Quando cansam, sentam e falam sério. Organizam-se, traçam planos.
O tempo passa. Crescem, mas não muito; o espaço confinado não permite. Tornam-se curiosa raça de anões, de membros curtos e grandes cabeças, onde brilham olhos semelhantes a faróis, sempre a perscrutar a escuridão das entranhas. E ali fazem a sua cidadezinha, com casinhas muito bonitinhas, pintadas de branco. A escolinha.
A prefeiturazinha. O hospitalzinho. E são felizes.
Esquecem o passado. Restam vagas lembranças, que com o tempo adquirem contornos místicos.
Rezam: "Grandes Ursas, que estais no firmamento...". Escolhem um sacerdote - o Grande Profeta, homem de cabeça raspada e olhar terrível; uma vez por ano flagela os habitantes com o Chicote Sagrado. Fé e trabalho, exige. O povo, laborioso, corresponde. Os celeirinhos transbordam de comidinhas, as fabricazinhas produzem milhares de belas coisinhas.
Passa o tempo. Surge uma nova geração. Depois de anos de felicidade, os habitantes se inquietam: por um estranho atavismo, as crianças nascem com longos braços e pernas, cabeça bem proporcionada e meigos olhos castanhos. A cada parto, intranqüilidade. Murmura-se: "Se eles crescerem demais, não haverá lugar para nós". Cogita-se de planificar os nascimentos. O Governinho pensa em consultar o Grande Profeta sobre a conveniência de executar os bebês tão logo nasçam. Discussões infinitas se sucedem.
Passa o tempo. As crianças crescem e se tronam um bando de poderoso rapazes. Muito maiores que os pais, ninguém os contém. Invadem os cineminhas, as igrejinhas, os clubinhos. Não respeitam a polícia. Vagueiam pelas estradinhas.
Um dia, o Grande Profeta está a caminho de sua mansãozinha, quando os rapazes o avistam. Imediatamente, correm atrás dele, gritando:
_Sobe calvo! Sobe, calvo!
Volta-se o Profeta e os amaldiçoa em nome do Senhor.
Pouco depois, surgem duas ursas e devoram os meninos: quarenta e dois.
Doze são engolidos pela ursa menor e destruídos. Mas trinta descem pelo esôfago da ursa maior e chegam ao estômago - grande cavidade, onde reina a mais negra escuridão. E ali ficam chorando e se lamentando: "Ai de nós! Ai de nós!"
Finalmente, acendem uma luz.



(Moacyr Scliar- O carnaval dos animais)

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