sábado, 12 de maio de 2012


A vaca


Numa noite de temporal, um navio naufragou ao largo da costa Africana. Partiu-se ao meio que foi ao fundo em menos de um minuto. Passageiros e tripulantes pereceram instantaneamente. Sobrou apenas um marinheiro, projetado a distância no meio do desastre. Meio afogado, pois não era bom nadador, o marinheiro orava e despedia-se da sua vida, quando viu ao seu lado, nadando com presteza e vigor, a vaca CAROLA.
A vaca CAROLA tinha sido embarcada em Amsterdam.
Excelente ventre, foi destinada a América do Sul.
Agarrado ao chifre da vaca, o marinheiro deixou-se conduzir; e assim, ao romper do dia, chegaram a uma ilhota arenosa, onde a vaca depositou o infeliz rapaz, lambendo-lhe o rosto até que ele acordasse.
Notando que estava numa ilha deserta, o marinheiro rompeu em prantos: ''Ai de mim! Esta ilha esta fora de todas as rotas! Nunca mais verei um ser humano!'' chorou muito, prostado na areia, enquanto a vaca CAROLA fitava-o com seus grandes olhos castanhos.
Finalmente o jovem enxugou as lágrimas e pôs-se de pé.
Olhou ao redor, nada havia na ilha, a ão ser rochas agudas e poucas árvores raquíticas. Sentiu fome, chamou a vaca: ''Vem CAROLA'' ordenhou-a e bebeu leite bom, quente e espumante; Sentiu- se melhor; Sentou-se e ficou a olhar o oceano, ''Ai de mim''- gemia de vez em quando, mas já sem muita convicção; o leite fizera-lhe bem.
Naquela noite dormiu abraçado a vaca. Foi um sono bom, cheio de sonhos reconfortantes; e quando acordou- ali estava o ubre a lhe oferecer o leite abundante.
Os dia foram passando e o rapaz se apegava cada vez mais com a vaca. ''Vem CAROLA!'' ela vinha, obediente.
Ele cortava um pedaço de carne tenra - gostava muito de língua - e devorava-o cru, ainda quente, o sangue escorrendo pelo queixo. A vaca nem mugia. Lambia as feridas, apenas. O marinheiro tinha sempre o cuidado de não ferir orgãos vitais; se tirava um pulmão, deixava o outro; comeu o baço, mas não o coração, etc.
Com pedaços de couro o marinheiro fez roupas e sapatos e um toldo para abrigá-lo do sol e da chuva. Amputou a cauda de CAROLA para espantar as moscas .
Quando a carne começou a escassear, atrelou a vaca a um tosco arado, feito de galhos, e lavrou um pedaço de terra mais fértil, entre as árvores.
Usou o excremento do animal como adubo. Como fosse escasso, triturou alguns ossos, para usá-los cmo fertilizante.
Semeou alguns grãos de milho, que tinham ficado nas cáries da dentadura de CAROLA. Logo, as plantinhas começaram a brotar, e o rapaz sentiu renascer a esperança.
Na festa de São João, ele comeu canjica.
A primavera chegou. Durante a noite uma brisa suave soprava de lugares remotos, trazendo sutis aromas.
Olhando as estrelas, o marinheiro suspirava. Uma noite, arrancou um dos olhos de CAROLA, misturou-o com água do mar e engoliu esta leve massa. Teve visões voluptuosas, como nenhum mortal jamais experimentou... Transportado de desejo aproximou-se da vaca... E ainda dessa vez, foi CAROLA quem lhe valeu.
Muito tempo se passou, e o marinheiro avistou um navio no horizonte. Doido de alegria, berrou com todas as forças, mas não lhe respondiam: o navio estava muito longe. O marinheiro arrancou um dos chifres de CAROLA e improvisou uma corneta. O som poderoso atroou os ares, mas ainda assim não obteve resposta.
O rapaz desesperava-se: a noite caia e o navio afastava-se da ilha. Finalmente, o rapaz deitou CAROLA no chão e jogou um fósforo aceso no ventre ulcerado de CAROLA, onde um pouco de gordura ainda aparecia.
Rapidamente a vaca incendiou-se. Em meio a fumaça negra, fitava o marinheiro com seu único olho bom. O rapaz estremeceu; julgou ter visto uma lágrima. Mas foi só impressão.
O clarão chamou a atenção do comandante do navio; uma lancha veio recolher o marinhero. Iam partir, aproveitando a maré, quando o rapaz gritou: ''Um momento!''; voltou para a ilha e apanhou do montículo de cinzas fumegantes, um punhado que guardou dentro do gibãode couro. ''Adeus CAROLA'' - murmurou. Os tripulantes da lancha se entreolharam. ''É do sol'' - disse um.
O marinheiro chegou ao seu país natal. Abandonou a vida no mar e tornou-se um rico e respeitado granjeiro, dono de um tambo com centenas de vacas.
Mas apesar disto, tornou-se infeliz e solitário, tendo pesadelos horríveis todas as noites, até os quarenta anos. Chegando a esta cidade, viajou para Europa de navio.
Uma noite, insone, deixou o luxuoso camarote e subiu ao tombadilho iluminado pelo luar. Acendeu um cigarro apoiou-se na amurada e ficou olhando o mar.
De repente, estirou o pescoço, ansioso. Avistara uma ilhota no horizonte.
-Alô - disse alguém, perto dele.
Voltou-se. Era uma bela loira, de olhos castanhos e seios opulentos.
-Meu nome é CAROLA - disse ela.

(Moacyr Scliar- O carnaval dos animais)

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